A Melhor Série de Super-herói Já Feita…
Aviso: O texto abaixo contém spoilers, leia por sua conta em risco.
Esqueça Agents Of Shield, Agent Carter, Arrow, Flash, Gotham ou a fraquíssima Constantine. O Demolidor da Netflix é disparado o melhor seriado baseado em heróis dos quadrinhos já feito. A série consegue ser diferente em tom, estilo e ritmo de quase tudo relacionado à HQs que surgiu na TV nos últimos anos. E completamente diferente de tudo o que a Marvel já fez até agora.
O piloto sozinho já deixa no chinelo boa parte da “concorrência”, e dá uma aula sobre como adaptar um personagem, respeitando a sua essência e mitologia, dentro de uma trama que agrada tanto os fãs dos quadrinhos do herói, quanto ao público que simplesmente quer acompanhar uma boa história. E que boa história a Netflix resolveu contar. Livres da preocupação de manter a audiência de uma obra aberta, com os treze episódios sendo lançados todos de uma só vez, os produtores parecem ter muito mais segurança e liberdade para trabalhar.
Isso explica não só o tom mais maduro e violento da série, quanto sua ousadia na hora de filmar as cenas de ação. Nenhuma outra série de herói (e me arrisco a dizer que também nenhum filme) filmou de forma tão crua e estilosa sua pancadaria.
Há momentos inspiradíssimos, como a bela homenagem a clássica cena do corredor do cult sul-coreano Oldboy, no final do segundo episódio, e a sequência de ação presente no quinto episódio, filmada da perspectiva de quem está dentro do carro, com a câmera se movendo lentamente em um giro de 360º, mostrando pedaços da porradaria que rola solta do lado de fora. Junte isso a uma fotografia irretocável, e uma trilha sonora que consegue nos deixar tensos de verdade, e voilà, finalmente vemos um super-herói ganhando o tratamento que merece nas telinhas também.
Mais do que uma série de super-heróis, Demolidor é também um thriller policial. Graças a esse tom mais adulto, possui um arco dramático forte de verdade, com personagens bem escritos em uma trama muito bem desenvolvida. Em outras palavras, o lance aqui é muito mais próxima de Breaking Bad, The Sopranos e House of Cards, do que das séries do CW. E eu não poderia ficar mais feliz com isso.
Mérito do showrunner da série Steven S. DeKnight, que além de empregar essa estética cinematográfica, desenvolve a narrativa sem pressa, construindo e adicionando camadas cuidadosamente a seus personagens a cada novo episódio. Nada parece gratuito, ou muito expositivo. Os diálogos são ágeis, tem peso e humor quando é necessário, e o melhor, não tem aquela urgência de explicar tudo nos mínimos detalhes (amém!). Na verdade, eles parecem não se preocupar em explicar muita coisa logo de cara, e isso é ótimo. Esse cuidado em não se antecipar, e essa paciência em construir aos poucos a personalidade e identidade dos seus protagonistas deveria servir de exemplo para algumas produções (ouviu ai, Gotham?). Isso dá a ela não só um ritmo próprio, mas uma ideia de continuidade. Nos passa uma sensação de unidade. Sou mais um a reforçar o coro: A impressão que temos é a de que estamos assistindo um filme de treze horas, não a uma série de TV.
Todo esse zelo se reflete também na escolha do elenco. Terminada a temporada, fica difícil imaginar o que seria da série sem esse cast. Todos, sem exceções, desenvolvem bem seus papéis. A começar pelo herói da vez, Charlie Cox. Se Ben Affleck não convenceu ninguém no papel na medíocre adaptação para os cinemas, Cox prova que é o cara certo para o trabalho, nos fazendo acreditar que um jovem cego de Hell’s Kitchen pode sim chutar bundas. Ele dá o tom certo a Matt Murdock, um homem cheio de conflitos internos, obstinado a fazer justiça. Eu que só tinha o visto até agora no divertido Stardust (filme de fantasia bacana, mas pouco lembrado), gostei muito de sua atuação aqui. O modo como ele eliminou seu sotaque britânico para dar vida a um nova-iorquino, e como ele é convincente nas cenas de ação estão de parabéns. O cara parece realmente dominar os paranauê do Parkour. Seu Demolidor impõe medo e respeito. Bate (e muito) nos criminosos da cidade, mas também apanha. É nocauteado, fica cheio de hematomas. Sem a máscara, Matt questiona a todo o tempo os seus atos, e o que ele está se tornando, busca refúgio na igreja, conversando com o Padre, e continua sua busca por justiça nos tribunais. E Cox convence em todos esses momentos.
Igualmente convincente é sua relação de amizade com Foggy Nelson, vivido por Elden Henson, numa dobradinha que parece xerocada das páginas dos quadrinhos, tamanha a fidelidade. A química entre os dois é ótima, e ajuda a quebrar um pouco do clima pesado constante na série. Henson é outro que está perfeito no papel. Seu Foggy serve de alívio cômico, com um humor sobre medida, mas é também o coração da série. De certo modo, é ele quem leva luz ao mundo de Murdock, sempre esperançoso, beirando muitas vezes a ingenuidade. Ambos partilham da mesma crença na justiça, mas seus métodos não poderiam ser mais diferentes. O embate ideológico entre os dois, já na reta final foi um dos pontos altos do show pra mim. Quando eu iria pensar que um episódio inteiramente centrado na discussão de relacionamento entre dois amigos, em uma série onde tem um mascarado distribuindo sopapo pra tudo que é lado, ninjas, e gente morrendo de tudo quanto é forma, ia se tornar um dos meus episódios favoritos.
O restante do elenco também faz bonito. A enfermeira Claire, de Rosário Dawson é bacana, servindo tanto de interesse amoroso, quanto de sidekick. Ela parece fazer ligação direta com as séries de outros vigilantes que estão por vir, como Luke Cage e Punho de Ferro, o que faria todo sentido, mas fica a impressão que podiam ter aproveitado um pouco mais da personagem aqui. De uma hora para outra, ela some sem deixar vestígios. Nada que comprometa o resultado final, já que fica claro o seu papel na construção do herói que Matt está se tornando.
Já a gatíssima Debora Ann Woll está encantadora como Karen Page. Assim como Dawson, ela cria uma personagem feminina forte que consegue ir além do papel de donzela em perigo. A dobradinha entre Page e o repórter Ben Urich é ótima. Parte do tom investigativo da série se deve a dupla, e a sua empreitada em desmascarar o Rei do Crime. Urich, interpretado pelo ator Vondie Curtis-Hall, é outro coadjuvante que não deixa a nada a dever a sua contraparte das HQs. Fora a mudança de etnia (que para mim foi até bem-vinda), a personalidade e o senso de justiça do personagem se mantiveram intactos. Figura recorrente nas histórias do Demolidor e do Homem-Aranha, me surpreendeu bastante a decisão de matar o personagem na reta final da temporada. Demorei certo tempo para gostar da ideia. Ainda que coerente e impactante para a história, Urich é um dos repórteres mais relevantes do universo Marvel, e sem dúvida poderia ser utilizado mais para frente. Quem sabe até, indo trabalhar pro Clarim Diário de verdade dessa vez, agora que os direitos do Cabeça de Teia estão com a Casa de Ideias, novamente. Bom, fazer o quê, né.
Igualmente dolorosa é a morte de Wesley. O braço direito do Rei do Crime, encarnado por Tobey Leonard Moore, é cínico, ardiloso e quase tão perigoso quanto seu patrão. Sabe aquele tipo de personagem que você adora odiar? Pois é, esse é o cara. Sua morte é outra que me desagradou a principio, tanto pela forma meio estúpida como ocorre (mas até admissível se pensar no quanto ele é arrogante) quanto pela sua saída, mas a teia de eventos que ela desenrola, e a que pode vir a desencadear nas próximas temporadas quando Fisk finalmente descobrir quem matou seu fiel aliado, compensa.
E falando no Diabo, o que dizer desse Rei do Crime? Ou melhor, Wilson Fisk. O cara é sem sombra de dúvida o melhor vilão do Universo Cinematográfico Marvel até agora. Vincent D’Onofrio está simplesmente destruindo no papel. O cara é até mais intimidador do que o personagem nos quadrinhos. Quem conhece o seu trabalho, sabe como D’Onofrio consegue ser incrivelmente assustador as vezes (lembram do Recruta Pyle de Nascido Para Matar?), mas o cara se supera aqui. Seu Wilson Fisk é perturbado, bipolar. Parece uma fera enjaulada, sempre a ponto de explodir. E quando explode, você pensa que não existe nada mais perigoso do que ele. Seus acessos de fúria são aterrorizantes.
A sacada de não revela-lo logo de primeira é ótima. Você ouve um boato sobre ele aqui, outra coisa acolá, e aos poucos vai descobrindo que ele tem a polícia na mão, comparsas que preferem se matar a revelar seu nome. No entanto quando ele finalmente aparece, lá pelo terceiro episódio, contemplando uma pintura, aparenta certa fragilidade. Acabamos nos sensibilizando com sua falta de jeito ao investir em Vanessa, e vejam só, até torcemos pelo vilão. Só para logo em seguida, testemunharmos horrorizados o quanto o cara pode ser brutal (Fica a dica, nunca interrompa o encontro do Rei do Crime).
A humanizada que a série da na origem dele é legal pra cacete. Fazer tanto o herói, quanto o vilão serem frutos de suas respectivas educações, e viverem sob a sombra dos ensinamentos de seus pais, funciona muito bem pra mim. Ainda que de certa forma justifique o descontrole emocional de Fisk, mostrar seu passado só enriquece ainda mais o personagem. De certo modo, esse ainda não é o Rei do Crime que conhecemos. A série gira em torno tanto da transformação de Matt em Demolidor, quanto na de Fisk no Rei do Crime. E a julgar pelo discurso épico do personagem no capítulo final, esperem por um vilão ainda mais assustador e implacável. Eu sinceramente, quero muito ver o Wilson do D’Onofrio numa trama a la Queda de Murdock nas próximas temporadas (e de terno branco, por favor! rs).
Como fã do personagem me chamou atenção, e encheu de alegria, o quão bem os produtores compreenderam quem é o personagem. Um dos maiores erros em filmes e séries de heróis recentes é querer empregar essa estética realista e sombria do Batman do Nolan a personagens que não se assemelham em absolutamente em nada com o Cavaleiro das Trevas (Sim Oliver Queen, estou olhando pra você). Com o Demolidor por sua vez essa tática funciona, e muito bem, pois tanto o Homem-Morcego quanto o Demônio Destemido tem essa aura dark e urbana impressa em seu DNA. E ambos devem isso ao mesmo homem: Frank Miller. Se a série lembra em alguns momentos Batman Begins (filme que é praticamente uma adaptação de Batman: Ano Um, do Miller) é por que ela busca inspiração justamente na obra do quadrinista.
Tudo lembra a fase consagrada do autor com o personagem. O visual do seu primeiro uniforme, o tom das histórias, o universo cheio de mafiosos e viciados, a simbologia religiosa, Stick e os Virtuosos. O Demolidor da Netflix é Frank Miller puro. E é indescritível o quão bom é ver isso nas telas. Quem lia o herói na época do formatinho na saudosa Superaventuras Marvel, entende bem o que estou falando.
A série ainda se conecta perfeitamente ao Universo Cinematográfico Marvel. Os planos do Rei do Crime de reconstruir a cidade se dão justamente em decorrência da destruição causada pela invasão Chitauri em Os Vingadores. Isso sem mencionar os vários easter eggs do universo Marvel e do próprio herói presente em toda série. É uma capa de jornal mencionando o Hulk no escritório do Ben Urich, é uma menção a Elektra que surge num papo com o amigo, é o Nobu trajando as tradicionais vestes vermelhas dos ninjas do Tentáculo, é o símbolo do Serpente de Aço nos pacotes de heroína da Madame Gao, que muito provavelmente deve vir de K’un Lun, cidade do Punho de Ferro, outro herói que ano que vem tá dando as caras na Netflix.Tudo isso é colocado de forma bem sutil. Você percebe que a série faz parte daquele universo, mas aqui não tem a pressão de dialogar diretamente com os filmes como Agents of Shield faz o tempo todo com os filmes da casa.
Mesmo com a diferença de tom, não é difícil de imaginar esse Demolidor aparecendo ali para dar uma forcinha pros Vingadores, meio assim como quem não quer nada. A versão final do seu uniforme (que eu detestei nas imagens, mas adorei ver em ação) lembra muito o design da roupa do Capitão América e do Gavião Arqueiro. Tem toda uma história de como ele chega a esse modelo mais tático e funcional, mas é perceptível o esforço da Marvel em aproximar visualmente série e cinema. Fico imaginando o quão bacana seria mostrar ele entrando pros Novos Vingadores, chamando a Viúva Negra pra um papo ali nos telhados de Hell’s Kitchen. Quem sabe, com a Guerra Civil vindo aí, não vemos isso se tornar realidade.
O fato é, com Demolidor, a Netflix estabeleceu um parâmetro muito alto para as próximas produções do gênero, e jogou lá pra cima a expectativa para as próximas produções da casa (eu sinceramente espero que AKA Jessica Jones segure o rojão). A Netflix mostrou que é possível adaptar histórias de heróis com um material mais adulto, estilo, qualidade e fiel as HQs, o que me faz sonhar a possibilidade de ver uma série do Justiceiro nos mesmos moldes. Com a segunda temporada confirmada para o ano que vem só nos resta esperar e agradecer. E que venha a Elektra e o Mercenário. Obrigado, Netflix!