Segundo Ano da Série Consegue Se Reinventar Com Uma Intrincada Trama Neo-Noir
Aviso: O texto abaixo contém spoilers, leia por sua conta em risco.
Esqueça qualquer comentário negativo que você possa ter ouvido sobre essa segunda temporada de True Detective. É uma vergonha que o segundo ano da série tenha tido uma recepção tão morna, pois o drama policial da HBO ainda é de longe um dos programas mais intrigantes e consistentes dos últimos tempos. Ok, o ano anterior continua sendo uma das coisas mais inovadoras que a TV americana produziu recentemente, mas isso não significa dizer que a qualidade do show tenha caído em absolutamente nada. True Detective se manteve solida mesmo com a drástica mudança de elenco e narrativa.
O showrunner do seriado, Nic Pizzolatto, poderia muito bem ter se limitado a repetir a mesma estrutura de antes, mas arriscou ao procurar se distanciar o máximo possível da temporada estrelada por Matthew McConaughey e Woody Harrelson. Apostar nesse formato de antologia é uma atitude corajosa, pois na prática significa ter que conquistar todo o seu público novamente. Mas quer saber? Essa se mostrou uma ótima sacada. Uma vez que você se deixa absorver pela trama, percebe o quão eficiente é o trabalho do roteirista. Todo esse novo arco funciona perfeitamente dentro da proposta da série, que é a de contar boas histórias de detetive.
As comparações são obviamente inevitáveis, mas o que tem que se ter em mente é que se trata de abordagens distintas sobre o tema. Se em sua estreia o tom surrealista à la David Lynch, e os monólogos existencialistas do niilista Rust foram o que mais se destacaram, essa segunda temporada acerta em cheio ao adotar um clima mais próximo dos thrillers policiais. Em certos momentos me lembrou um pouco os bons filmes do gênero feitos na década de setenta, como Chinatown, Sérpico e Operação França.
Essa transição pode não agradar a muita gente, principalmente os fãs mais hardcore que ainda teorizam sobre os mistérios em torno de Carcosa e o Rei de Amarelo, mas funciona muito bem. Se você conseguir desapegar-se de tudo o que foi mostrado na primeira temporada, e assistir a essa de coração aberto, certamente não terá do que se arrepender. A forma como o roteiro vai juntando as coisas, montando lentamente as peças do intrincado quebra-cabeça que compõe o caso da vez é sensacional. O assassinato de Ben Caspere é apenas o estopim de uma teia de eventos que envolve especulação imobiliária, intriga política, prostituição, chantagens, tiras corruptos e a máfia russa e mexicana. A pegada de film noir ganha contornos muito maiores nessa temporada. Os principais elementos do gênero estão todos lá; o tom fatalista, o clima de desesperança, os personagens moralmente ambíguos, a violência, a corrupção, os rostos ocultos pela penumbra ou pela fumaça do cigarro. Tudo isso ajuda a criar um clima de tensão que perdura por toda temporada (a cena da cozinha com Frank e Velcoro é um ótimo exemplo).
A investigação em si vai ficando em segundo plano, à medida que os dramas pessoais de cada um dos personagens vão ganhando profundidade. A cada episódio uma faceta nova de um deles é apresentada, mas nunca de forma que pareça gratuita. Pizzolatto consegue construí-los, e desenvolver sua trama detetivesca evitando qualquer didatismo.
No entanto, apesar de todo esse visível cuidado, uma das críticas mais frequentes contra essa temporada é justamente sobre o excesso de personagens e subtramas, que podem deixar qualquer um menos atento meio perdido com tanta informação. Isso sem contar a constante reclamação sobre como a primeira metade desse segundo ano avança com “lentidão”. Honestamente, esse ritmo devagar pode até desagradar a alguns espectadores, mas é ótimo ver uma história que se aventure numa abordagem diferente. É basicamente como se os primeiros episódios preparassem o terreno para o fatídico desfecho.
E quanto aos personagens eu não poderia discordar mais. Nenhum deles parece deslocado, ou sem propósito em momento algum. Embora o policial interpretado por Colin Farrell, e o gângster vivido por Vince Vaughn roubem a cena, tanto a personagem de Rachel McAdams quanto o de Taylor Kitsch são igualmente interessantes e bem trabalhados. Notem como a aura depressiva da cidade parece pesar sobre os ombros de todos eles. Cada um com seus demônios internos acabam no final provando ter muito mais em comum um com o outro do que pensavam. É admirável a forma sutil com que Pizzolatto consegue conectar as tragédias pessoais de seus protagonistas. Todos os quatros têm problemas relacionados à paternidade e questões mal resolvidas com o sexo.
O Det. Ray Velcoro (Colin Farrell), o retrato fiel do policial decadente, é assombrado por ter matado o suposto estuprador da sua ex-esposa, e faz da sua relação com o filho a sua única ligação com a vida normal de chefe de família que um dia teve. Vida essa que o patrulheiro rodoviário Paul Woodrugh (Taylor Kitsch), mergulha de cabeça na tentativa de reprimir quem ele é de verdade, mesmo que essa luta contra sua natureza o coloque num estado alterado constante. Já a Det. Ani Bezzerides (Rachel McAdams), que tem uma relação conturbada com o pai e a irmã, usa o sexo como forma de lidar com os traumas vividos quando criança. E por fim, o gângster Frank Semyon (Vince Vaughn), moldado pelos maus tratos sofridos na infância na mão do pai, tenta se estabelecer como um homem de negócios lutando contra a ameaça de perder todo seu império, enquanto sua mulher o pressiona a terem um filho.
Indiscutivelmente, as atuações continuam sendo um dos pontos alto da série. O Velcoro de Colin Farrell é quase tão hipnótico quanto era o Rust de McConaughey. Ray sintetiza bem a alegoria do herói trágico que luta em vão contra um destino premeditado (Lembram do sonho com o pai dele no terceiro episódio?). Alcoólatra inveterado, e de caráter totalmente duvidoso, ele consegue conquistar nossa torcida logo de cara, mesmo com todas suas falhas.
Mas a grande surpresa mesmo foi o mafioso Frank Semyon. A interpretação visceral de Farrell te deixa fascinado e horrorizado, no entanto, é Vince Vaughn que tem um dos desempenhos mais surpreendentes aqui. Vaughn consegue se redimir por todas as comédias meia boca que tem feito nos últimos anos, criando um gângster imponente e impiedoso, com um quê de Michael Corleone, mas que ao mesmo tempo consegue conquistar a nossa simpatia. Os momentos em que ele é obrigado usar da força bruta para subjugar seus adversários, me lembrou os acessos de fúria de Vincent D’Onofrio em Demolidor, outra atuação memorável que tivemos esse ano. Até a sua relação de cumplicidade com a sua esposa Jordan (a belíssima Kelly Reilly) lembra um pouco da dinâmica do Rei do Crime com a Vanessa Fisk.
Já a sempre competente Rachel McAdams, confere densidade e fragilidade emocional à policial Bezzerides na reta final da série num contraste perfeito com a postura séria e determinada do inicio. Taylor Kitsch também se sai muito bem como Woodrugh, mantendo sempre um olhar angustiado, sobressaltado, como se estivesse a ponto de explodir. Ele consegue convencer tanto como o herói de ação, quanto nas horas dramáticas. Curiosamente, todas as críticas mistas que essa temporada vem recebendo, só comprovam minha teoria de que Kitsch, apesar da atuação sólida, é um baita de um pé frio. Praticamente todas as grandes produções em que ele trabalhou floparam.
Os aspectos técnicos também continuam de parabéns. A cinematografia da série é espetacular. A impressão que tive foi a de que o diretor Cary Fukunaga não fez tanta falta quanto julguei que faria. Não tem uma cena tão embasbacante quanto o plano sequência da temporada passada, mas tem um tiroteio muito bem filmado no quarto episódio, momento esse, aliás, que serve como ponto de virada na trama.
A perseguição na mata, e a caminhada de Frank no deserto no último episódio também são belissimamente filmadas. O desfecho inteiro em si é ótimo, não deixando nenhuma ponta solta, e sendo extremamente coerente com tudo o que foi construído durante os oito episódios. Mas esse é de longe um dos season finale mais depressivo e desesperançoso que eu já assisti. Mais pessimista do que isso acho que impossível. O que pra mim, sinceramente, não é demérito nenhum. Finais felizes, no geral, são superestimados. Esse final pelo menos confere todo o senso de gravidade que a história precisava, além de fazer valer o slogan utilizado na promoção dessa temporada: “Nós temos o mundo que merecemos!” Para os verdadeiros amantes do gênero policial, e do noir esse ano da série se mostrou praticamente imperdível.
Enfim, True Detective é um com certeza um dos melhores shows de 2015 até o momento, e de longe um dos meus favoritos. Fica agora a expectativa de que a HBO e Pizzolatto realizem uma terceira temporada. Se tiver o mesmo nível de qualidade mostrado até agora, eu já me dou por satisfeito.
Cara, adorei sua crítica. Achei muita gente falando mal da série e pensei: “mas só eu gostei? Gente, tenho um gosto muito duvidoso”. Daí é ótimo ver que mais pessoas compartilharam do meu gostar hahaha. Realmente, houve uma distância imensa da estrutura de uma temporada pra outra e acho que foi o que causou revolta, porque as pessoas não estão preparadas para ter as expectativas quebradas. Não foi a lindeza que foi a 1a, na verdade, nem tem como comparar, parece que foi outra pessoa que escreveu outro seriado, ainda que a dubiedade e as tensões do ser humano prevaleça, o elo que faz de true detective uma história só.
Adorei, parabéns! =D
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Obrigado! É sempre bom achar pessoas que compartilham gostos em comum… 😀
Eu fui meio que pego de surpresa por essas críticas negativas. Tava tão mergulhado no clima dessa temporada, que custei a acreditar que teve uma galera que não gostou. Tremenda injustiça. A série tava sensacional.
Abraços!
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