Neste mundo,
o destino da humanidade é ser controlada
por alguma entidade ou lei superior?
É como se a mão de Deus pairasse sobre nós?
Ao menos, é verdade…
O homem não tem controle nem mesmo
sobre a sua própria vontade.
Assim se inicia o prólogo da série em anime de 1998. E meu primeiro contato com Berserk foi através do anime, nada sabia dos acontecimentos ocorridos antes no mangá e nem após os 26 episódios da série. A história do espadachim negro me parecia mais uma história como qualquer outra em um anime baseado num mundo fantástico medieval. Um guerreiro misterioso chegando numa cidade sombria, onde as pessoas demonstravam em seus rostos a sombria expressão de estar vivendo em um lugar no qual os humanos estão condenados – mas talvez ainda livres.
Tudo isso era muito comum de ver em um gênero como aquele, mas não bastou muito para que eu mudasse de ideia e considerasse Berserk um dos maiores mangás já feito, comparável ao mangá Akira, sem o menor exagero. E é logo no primeiro episódio do anime, que percebemos ali todos os elementos reunidos de uma boa trama que prende o espectador do início ao fim.
Numa estrada sombria que dá para uma cidade aterrorizada por demônios, caminha nosso herói (ou melhor, diria anti-herói). Ao longo da estrada, numa indiferente noite chuvosa, passa por ele uma carroça com crianças dentro, indo em direção ao castelo. Entre as inúmeras pedras rochosas que o constituem, só é possível ouvir prantos e gritos. O clima de medo não se restringe ali apenas, numa taverna – e tavernas sempre trazem eventos desagradáveis – homens bebem vinho, atônitos e receosos, enquanto alguns deles (os quais certamente possuem algum poder como subordinados do “senhor” daquele lugar) humilham uma garotinha e destilam ameaças. Interrompidos por flechas lançadas de um forasteiro recém-chegado, são avisados de que o Espadachim Negro se encontrava no local e buscava vingança; ao mero vestígio de um ataque sorrateiro, sua extensa e pesada espada Dragonslayer divide um homem em dois. Ao longo da imensa capa desvelada, uma face com olho direito cego e um braço mecânico direito que mais parece um pequeno canhão.
A procura de um grupo de poderosos demônios conhecido como A Mão de Deus, logo se percebe que aquele homem, cheio de cicatrizes e traumas de um passado misterioso, tem um acerto de contas pessoal. Até aqui nada é revelado, a não ser que Midland (principal reino onde se desenrola grande parte da história) se tornou um pesadelo para os habitantes desde que Griffith passou a governar o reino. Nome que figura entre os sonhos (ou pesadelos) de Guts e que se imiscui entre assombrações demoníacas de um misterioso passado aterrorizante e torturador. O senhor do castelo – ou melhor, podemos chamá-lo apóstolo – devora crianças em troca de uma relativa “paz” para os habitantes daquela região, o próprio ministro se encarrega de fornecer os sacrifícios. E Guts se põe nesse meio, não como um herói, mas um vingador que se dirige a um alvo específico, o que não quer dizer que não tenha havido sérias consequências: toda a cidade é sitiada e os habitantes massacrados.
No esperado encontro da batalha, em meio às chamas, ver-se que é preciso mais do que uma força além do comum para derrotar um apóstolo. Com uma força sobre-humana eles estão entre o humano e deuses, são também chamados de anjos, e claro, não na mesma acepção a que toma a cultura cristã. Em todo tempo, durante a batalha, o “senhor”, que se torna uma mistura de serpente com lagarto, faz questão de ressaltar a fragilidade e inferioridade humana. No seu pescoço, um estranho objeto, a que Guts reconhece como behelit. Com formato oval e uma face fragmentada e adormecida, é evidente a possível relação do objeto com a tal criatura e ela, por sua vez, reconhece em Guts o que seria a marca do sacrifício e se surpreende; Guts o vence, não sem um pouco de sorte. E após isso, retornamos a um passado no qual Guts é apenas um jovem mercenário participando de guerras entre feudos em busca de recompensas.
“É verdade o que você disse. Humanos são fracos, e morrem facilmente. Mas não importa o quão fraco, não importa o quanto somos torturados, não importa quanta dor nós sentimos, nós ainda queremos viver. ” Guts.
Ilustrado e roteirizado por Kentaro Miura, Berserk tem seu primeiro volume lançado em novembro de 1990, não demorou muito para que fosse amplamente aclamado e reconhecido como um dos mangás de maior influência da cultura pop japonesa, influenciando games como Devil May Cry, Final Fantasy VII, Dark Souls e o famoso mangá Viland Saga. Berserk se passa em mundo medieval fantástico, no qual mergulhamos na sombria vida de Guts, o espadachim negro, que vive aterrorizado por espíritos e demônios e carrega consigo ódio mortal do antigo líder de um grupo de mercenários do qual fazia parte.
Solitário, de personalidade fechada e ampla habilidade com sua espada, Guts se mostra com capacidade muito acima do que um humano comum. Tem-se, às vezes, a impressão de que estamos diante de um personagem invencível. Mas não levará muito tempo para que o espectador perceba que, para o protagonista sobreviver num mundo rodeado de criaturas absurdas e ultraviolento será preciso um esforço supra-humano. E Kentaro Miura consegue nos levar, exatamente, a experienciar através do seu traço minucioso (detalhista, mas também sempre propenso ao exagero), a sensação desoladora e angustiante da condição humana num contexto medieval.
E sim, violência é o que não falta, e Kentaro trata dos temas mais torpes possíveis como estupro, incesto, pedofilia, etc. Porém, não com a banalidade do que conhecemos como gore, mas com a naturalidade precisa de um contexto que se encaixa no universo medieval representado. No primeiro arco da saga, inúmeros são os indivíduos que aparecem e são mortos da forma mais carniceira e chocante possível, nem crianças, mulheres e idosos são poupados, e alguns trechos fazem a série Game of Thrones parecer o programa da Xuxa. Mas não se engane o leitor, que esta seria a razão de aconselhá-lo a ler este mangá. Não. Em geral, também pouco me agrada violência barata e gratuita em séries, livros, filmes, etc, e certamente não é disso que se trata Berserk. O modo excepcional como a trama se desenrola, a consciência que cada personagem tem do seu drama e da sua condição, a busca por um sentido existencial ou momentos de pura melancolia, alguns bastante poéticos e filosóficos… Kentaro sabe explorar esses elementos com grande maestria, sem perder, é claro, a impressão de inquietude e tensão constante, e levando o leitor a apreciar cada rumo da trama.
Voltamos novamente para Guts, dessa vez regredindo à infância, já marcada por inúmeras desgraças: ainda bebê, foi achado sobre as raízes de uma grande árvore, sobre a qual jaziam inúmeros corpos enforcados, entre os quais estava a sua mãe. Uma tropa de mercenários ali passavam. Impressionados por ouvir choro intenso de um bebê, Shisu, (esposa do líder do bando de mercenários, Gambino), decide adotar o menino, já que carregava ainda o trauma de ter perdido recentemente um bebê. Guts é levado e criado dentro desse grupo, porém, existe entre eles a superstição de que o menino trará mau agouro. Guts cresce nos campos de batalha, desde pequeno é tratado com desprezo e crueldade por parte de Gambino. Mesmo assim, ainda o vê como a figura paterna que nunca teve e na guerra um estímulo para conseguir sua admiração. Shisu logo sucumbe à peste e morre, e Gambino atribui a culpa em Guts, por acreditar que ele traria mau destino à tropa.
Com o passar do tempo, Gambino aluga Guts a um de seus amigos da tropa mercenária, Donnovan, que o estupra. Durante uma missão, Guts o mata em segredo, e em seguida Gambino perde a perna numa batalha. E as desgraças não param por aí, Gambino novamente atribui a culpa à Guts e, bêbado, tenta matá-lo. Guts o mata acidentalmente e foge do bando; é ferido com uma flecha e é tido como morto após cair de um penhasco, e como se não bastasse, ainda teve que enfrentar uma alcateia para sobreviver.
Já desde pequeno a luta constante pela sobrevivência é a característica central de Guts, ainda que ele não tenha nenhum sentido “além” que não seja apenas o de sobreviver. Aliás, essa característica não aponta para uma luta inconsciente (apesar de que em muitos casos haja apenas furor instintivo), Guts tem plena consciência do seu vazio existencial, vagando entre feudos e guerras alheias para ganhar a vida, isto é, na sua vida não há nenhum propósito grandioso que não seja o de brandir a espada pela vida.
“Se você não luta pela sua vida, então você não merece vivê-la”. Guts.
A ERA DE OURO
Em meio à guerra entre o império de Chuder e Midland, que já dura cem longos anos, Guts enfrenta Bazooso, o “cavaleiro cinzento”, em meio a tomada de um feudo em Midland, e em troca de sete moedas de ouro. Seu gênio impulsivo e irrefletido atrai a atenção de Griffith, principalmente pela sua vitória arriscada e imprudente, mas não menos impressionante para um simples jovem mercenário. Guts recebe atenção e perplexidade de todos à sua volta. Após receber a recompensa, é interpelado por um grupo de mercenários numa estrada. Griffith dá as ordens e Guts derrota alguns de seus homens. E é nesse encontro que Guts tem seu primeiro contato com o bando do falcão (taka no dan).
Já aqui são apresentados alguns personagens que se tornarão sua família: Corkus, de gênio orgulhoso e às vezes cômico, mantém ao longo das conquistas do bando uma postura implicante e irreverente em relação à Guts; Caska, única mulher e comandante do bando, e com habilidades superiores a de seus companheiros, se impõe pelas suas qualidades e seu ar austero em ambiente de batalhas e guerras totalmente hostil e indiferente às mulheres; Judeau, habilidoso com adagas, é o mais diplomático e companheiro do grupo, não raro sempre acha maneiras de apaziguar conflitos entre Guts e Caska; Ricket, bem, se trata de uma criança generosa, que admira Guts e está sempre disposta a ajudar os falcões de alguma forma; Pippin, guerreiro de aspecto rústico e de poucas palavras, mas bastante leal ao grupo; E por fim, Griffith, o carismático líder do bando do falcão.
E é nesse encontro que Guts tem sua primeira derrota, tendo que se conformar a servir Griffith como integrante do seu grupo. A era de ouro marca, então, o período de maior realização e satisfação pessoal na vida de Guts, ao longo do qual cria laços e afeição permanente com todo o grupo. Também é um período marcado por muitas conquistas e amadurecimento dos personagens, assim como a trajetória de ascensão e declínio do bando do falcão e o eclipse, um dos eventos mais, digamos, “traumático”, e que mudará radicalmente a relação e a trajetória dos personagens, encerrando o arco da era de ouro. Esses últimos aspectos serão tratados na próxima postagem.