Crítica | Os Oito Odiados

E Quentin Tarantino Nunca Nos decepciona…

Hateful_Eight_01Aviso: O texto abaixo contém spoilers, leia por sua conta em risco.

Bastardos Inglórios foi o primeiro filme do Tarantino que vi no cinema. E é de longe o meu favorito dele. Que experiência foi ver aquilo na tela grande. Os diálogos, a narrativa, a trilha sonora. O cara tem um verdadeiro dom para contar histórias. A sensação que eu tive na saída da sessão de Os Oito Odiados está muita próxima disso. Eu vi um bom contador de histórias em ação. Sendo bem honesto, não é o melhor filme que eu já assisti dele (para mim Bastardos e Pulp Fiction ainda são suas obras-primas), mas é sem dúvidas um dos filmes mais fodas que eu vi no cinema recentemente.

O oitavo filme da carreira do cineasta trás Kurt Russel na pele de John Ruth, um caçador de recompensas levando a criminosa Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) para ser enforcada em Red Rock. No caminho ele encontra com o também caçador de recompensas, Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson) e o xerife Chris Mannix (Walton Goggins). Ambos lutaram em lados opostos na Guerra Civil, e obviamente ainda carregam magoas do conflito, o que já cria um clima de tensão na primeira meia hora do longa. A situação só piora quando uma nevasca os obriga a procurar abrigo numa cabana no meio do nada com um bando de estranhos. Lá encontram o britânico Oswaldo Mobray (Tim Roth em sua melhor imitação de Christopher Waltz), o vaqueiro Joe Gage (Michael Madsen), o general confederado Sandy Smithers (Bruce Dern) e o mexicano Bob (Demian Bichir). Acontece que um desses estranhos não é quem diz ser. Pronto, está armado o cenário para um jogo de detetive, no melhor estilo “quem matou?”.

Hateful-EightPra quem acompanha a filmografia do cineasta, assim como eu, percebe de cara que essa história remete quase que imediatamente ao seu primeiro filme, Cães de Aluguel. Estranhos confinados em um espaço fechado, um deles é um impostor, detalhes importantes da história via vaivém no tempo, e lógico, litros e mais litros de sangue. Tá tudo lá. Na verdade, todos os seus habituais maneirismos estão de volta aqui. A divisão do filme em capítulos, o narrador onisciente que entra no meio da história para explicar algum ponto do plot, e claro, a violência exagerada, que já se tornou sua marca registrada. Toda essa autorreferência, que para muitos pode soar repetitiva, é um exercício metalinguístico interessante, e prova de sua genialidade em minha opinião. O próprio título já deixa essa brincadeira evidente (Oito Odiados, oitavo filme de sua carreira). Todos esses elementos têm obviamente como finalidade jogar com o espectador. E isso Tarantino sabe fazer como ninguém.

Reparem como tudo o que sabemos sobre os personagens vem através de diálogos, de conversas entre eles, com um contando algo sobre o outro, ou sobre si, sem praticamente nenhum flashback. Ok, até tem um lá pelo final, mas ele é bem pontual. O fato é que tudo isso tem a função clara de confundir, de deixar a cargo de nós espectadores imaginarmos, e ponderarmos a veracidade dos fatos narrados. Quanto mais eu penso nisso, mas eu acho esse um recurso foda pra cacete. Conseguir sustentar um filme quase que inteiro só com diálogos, num único cenário, e ainda sim torna-lo interessante a ponto de você nem perceber as quase três horas e meia de projeção requer um puta talento.

Até entendo que para muita gente o tempo investido nesses diálogos e construção dos personagens torne o filme um tanto arrastado, meio monótono. Mas vai por mim, não é o caso. Honestamente, eu mesmo me surpreendi com isso. Acho que leva mais de uma hora e meia até que alguma ação finalmente se desenrole. Mas é tão surpreendente o modo como ele consegue te manter interessado na trama, construindo uma atmosfera tensa, claustrofóbica, que eu sinceramente já estava fisgado. Não conseguia desviar meus olhos. E na boa, os diálogos dele conseguem ser muito mais violentos e agressivos do que a violência cartunesca do final (tá aí a história contada pelo Major Warren que não me deixa mentir).

screen shot 2015-12-15 at 5.35.38 pmDe muitas formas, entretanto, Os Oito Odiados é um filme muito mais contido, bem menor em escala, mas com um Tarantino cada vez mais maduro na direção. O modo como ele filma aquela imensidão branca e gelada é soberbo. A longa tomada que abre o longa, focando no rosto de cristo pregado a cruz coberta de neve é digna do Kubrick. Não só por conta da beleza estética, mas por todo o simbolismo por trás dela. Desse instante em diante fica claro: Não há escapatória ou redenção. Estão todos condenados. Não é a toa que o último capítulo se intitule “Homem negro, Inferno branco”. O armarinho é basicamente uma encenação do purgatório.

O uso de metáforas desse tipo é outra coisa que me impressionou bastante em os Oito Odiados. Dentro desse armarinho, com esses personagens que funcionam como representações de arquétipos clássicos dos westerns (o xerife, o prisioneiro, o caçador de recompensas), Tarantino faz a sua moda uma analogia à formação dos EUA. Como se o papel que cada um representasse não deixasse isso óbvio (o negro, o inglês o colonizador, o general escravagista, o imigrante mexicano), em dado momento ele ainda faz questão de dividir a cabana em dois lados, mostrando como a intolerância e a violência sempre estiveram, e ainda são elementos presentes na cultura americana.

O cineasta demonstra habilidosamente como não há espaço para minorias na “América”. Nenhuma delas. É fácil confundir seu discurso verborrágico com racismo ou machismo travestido de entretenimento. A insistência do diretor em utilizar palavras de cunho extremamente ofensivo como “nigger” ou “bitch“, pode soar gratuito e puramente provocativo – o momento em que o personagem de Kurt Russel repreende o xerife Mannix por usar o termo, dizendo que os negros não gostam mais de serem chamados assim soa de fato como uma resposta a todas as críticas ao uso excessivo dessa palavra em seus filmes –, mas escancaram questões que muitos gostariam de jogar para debaixo dos panos. Ainda que muitos digam que pelo fato de ser um homem branco ele não tenha autoridade para falar sobre racismo, machismo, ou coisas do tipo, é em seu roteiro que vi as críticas mais ácidas sobre os temas em um filme mainstream.

O modo como o Major de Samuel L. Jackson se blinda contra o racismo utilizando uma suposta carta escrita pelo próprio presidente Abraham Lincoln redigida a ele é um bom exemplo de como a sociedade era e ainda é bastante hipócrita. É como se o negro só ganhasse alguma legitimidade enquanto indivíduo uma vez que reconhecido como tal por uma figura de autoridade branca. Antes de crucificarem o cara, se perguntem: Esse cenário é assim tão diferente da nossa realidade? Substitua a carta de Lincoln pelo poder do status social e veja se não temos um retrato muito semelhante ao que vemos diariamente no mundo real.

hateful-eight-samuel-l-jackson-xlargeMas a meu ver, a crítica mais ferrenha é feita através da personagem de Jennifer Jason Leigh. A única mulher entre os odiados, ela já surge em cena com um baita olho roxo, e ninguém parece ver problema em agredi-la tanto física, quanto psicologicamente durante todo o longa. O desconforto que isso causa não podia ser maior. O cineasta tantas vezes acusado de glamourizar a violência, na verdade aqui brinca com a banalização e naturalização da mesma. E principalmente com o papel das mulheres dentro desses contextos. Se a personagem ser enforcada no final, selando uma trégua entre o xerife racista e o major negro já não é alfinetada suficiente no lugar que as mulheres acabam ocupando na sociedade (a diferença entre gêneros ainda é maior do que as diferenças étnicas), o valor da recompensa por sua cabeça é outro tapa de luva de pelica que o diretor dá. Ok, é seu irmão que arma o plano para resgata-la, mas alguém aí realmente dúvida do poder de liderança e engenhosidade de Daisy? É ela inclusive que no final tenta coagir o xerife e o major a soltarem seu bando, controlando fria e diabolicamente toda a situação. E ainda sim, sua cabeça vale menos do que a dos demais. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

Hateful_Eight_02Seus filmes não causam tanto falatório à toa. Não é qualquer um que usa da brutalidade e do choque para gerar algum tipo de reflexão no cinema hoje em dia (na verdade, eu diria que poucos diretores se arriscam nessas águas). Por isso é sempre interessante analisar seus filmes além do superficial. O subtexto de suas tramas é sempre muito rico. Algo até esperado para alguém que não segue muito a cartilha do convencional. E sério, como é foda ver um diretor com culhão para investir em histórias autorais dessa forma. Isso é claro, pode não agradar todo mundo. Mas quer saber? Dane-se.

Se há uma coisa que eu aprendi é que não há meio termos em se tratando de Quentin Tarantino. Ou você o ama, ou você o odeia. É quase impossível ser indiferente ao diretor. Mas goste ou não dele, é inegável a paixão que o cineasta tem pela sétima arte. Do formato escolhido para filmar o longa, absurdos 70mm (em oposição a película convencional de 35mm), à trilha original de Ennio Morricone, autor de trilhas sonoras icônicas como a de Era uma Vez No Oeste e Três Homens Em Conflito, tudo só atesta esse amor do diretor pelo cinema. E putz, como é bom ver alguém tão apaixonado por sua arte. Isso transborda na tela. Eu não tenho a menor dúvida do quanto ele deve se divertir fazendo esses filmes. E vendo o quanto ele consegue extrair de seus atores, e como eles sempre voltam para colaborar com ele, acredito que o mesmo se possa ser dito em relação ao elenco.

Samuel L Jackson é um ator foda, mas nos filmes do Tarantino ele simplesmente destrói. Ele só não domina esse filme de vez, por que o xerife racista do Walton Goggins e a Daisy Domergue de Jennifer Jason Leigh são igualmente bem construídos. Todo mundo está bem muito bem em cena. Até o Channing Tatum se sai bem nos poucos minutos que tem de tela. Confesso que agora até fiquei curioso para o ver interpretando o Gambit nos cinemas no ano que vem.

Hateful_Eight_03Enfim, Os Oito Odiados pode não ser o melhor filme do cineasta, mas ainda que funcione melhor para quem é fã do diretor, é algo que sem sombra de dúvidas vale e muito a pena ser conferido. Principalmente nos cinemas, como ele gostaria. Com o Quentin Tarantino alardeando por aí que pretende se aposentar após seu décimo filme, só nos resta lamentar se essa decisão realmente se concretizar. Poucos cineastas na atualidade merecem de fato o titulo de gênio como ele.

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