Por Que Ler Berserk – Segunda Parte

Se esse homem o considera

como um amigo verdadeiro…

É bom que saiba que no momento

em que as ambições dele fracassarem

a morte virá atrás de você,

uma morte certeira da qual

jamais poderá escapar! Nosferatu Zodd.

Griffith e Guts

Após sua derrota, Guts se vê obrigado a servir Griffith como membro do Bando do Falcão. O destino daqueles que são derrotados é a escravidão. E é com as palavras “você é meu” que Griffith acolhe o mais novo e prodígio membro do Bando do Falcão. Porém, as palavras mencionadas indicam mais uma admiração ao ter conquistado o que seria um valioso componente para o grupo de mercenários do que uma simples atitude de posse por parte de Griffith. A admiração entre os dois é mútua, ainda que Guts a demonstre à sua maneira.

Kentaro Miura estabelece uma dicotomia entre os dois personagens, que ora se torna cristalina, ora densa e ambígua: Guts sempre viveu para a luta, para brandir a sua espada e seguir seus instintos, é justamente o que aprendeu a fazer, ele não procura um sentido – ou talvez o percalço de sua vida o tenha feito chegar à conclusão de que um sentido para a vida seja uma busca tola -, segue a sua vontade e busca brandir sua espada para derrotar os inimigos que lhe surgem; Griffith é um homem que, dada as circunstâncias, precisa ser frio e racional, tudo precisa ser planejado, não pode haver falhas, pois sua vida e seu sonho estão em jogo. Para ele, a vida precisa de um próposito, uma vida sem finalidade, só porque nasceu, não merece ser vivida.

Estabelece-se, assim, a oposição mais clara entre o homem que luta para sobreviver, apostando todas as suas cartas no calor da batalha, e o homem que luta por um propósito maior, ainda que a realização desse propósito possa lhe trazer inúmeros sacrifícios, fazendo com que lance mão daquilo que lhe é mais precioso, para a realização de um bem maior. Assim, Griffith se admira do caráter tempestivo de Guts, da sua coragem e capacidade de apostar sua própria vida pela sobrevivência nas batalhas, e Guts pouco a pouco reconhece que ali não se trata de um simples grupo de mercenários nem de mais um líder a serviço de um grupo de aristocratas ambiciosos.

A consciência de si e do importante papel da sua existência, em Griffith, é pontuada constantemente, seja pelos seus discursos pessoais – que só se sente à vontade para mencioná-los na presença de Guts – seja pelos seus grandes feitos no campo de batalha, com inúmeras vitórias que importunam até mesmo a inflexível classe nobre e militar. Griffith é um líder carismático que atraiu um por um de seus membros em torno do seu caráter excepcional e salvador. De aspecto apolíneo e feminino, tem na sua fisionomia a expressão da harmonia e da brandura, às vezes frágil e gentil como uma criança ou astuto e maquiavélico como um demônio. Essa dupla face percebida tanto por companheiros quanto inimigos.

Além disso, todos do grupo mantêm apreço e admiração por seu líder, de alguma forma ele lhes trouxe sentido a sua existência, de alguma forma todos se sentem atraídos e seguros para servi-lo com espontaneidade. A princípio esta constatação acende a curiosidade de Guts, por se tratar de fenômeno incomum em um bando de mercenários. Desse modo, Griffith é um personagem radiante e seguro de si, que tem um grande sonho a conquistar e que ao longo das batalhas convence cada vez mais aqueles que o seguem. Além disso, seus monólogos acerca de suas reflexões existenciais e objetivos colocam-no como uma figura visionária, até mesmo como uma espécie de “messias” que veio ao mundo para cumprir um destino prodigioso.

“No campo de batalha, a vida de um soldado não vale mais que uma moeda de prata. Como se não fossem nada, as vidas da maioria dos homens são controladas por um bando de nobres e reis. Porém até mesmo um rei é incapaz de viver sua vida como bem entende, todos nós apenas nos rendemos ao fluxo conhecido como destino, e então desaparecemos. Nossas vidas são apagadas, e não sabemos quem somos. Deve existir um homem que nasceu com a chance de mudar o mundo, independente de seu status ou classe social. Esse homem seria parte da verdadeira classe privilegiada deste mundo, este homem poderia ter o poder absoluto de um Deus. Eu preciso saber qual é minha verdadeira posição neste mundo!”. Griffith.

Caska – De alguém que aguenta e espera, para alguém que luta e conquista.

Caska, além de ser um dos membros mais importantes do Bando do Falcão, é a personagem que apresenta uma grande admiração e devoção por Griffith. De início, aparentemente “fria” e muito orgulhosa de si, sua força e habilidade lhe possibilitou obter a posição de comandante, e ainda que tenha perdido uma batalha para Guts, é, de longe, a mulher mais forte entre os mercenários.

A repentina ideia de trazer Guts como membro do grupo e a forma descuidada com a qual Griffith age para defender Guts incomoda Caska desde o começo. O homem marcado pela razão, de conduta fria e calculista, por vezes, se coloca em risco para salva-lo – aparentemente é seu membro mais precioso para deixá-lo morrer em pequenas batalhas. Caska é a personagem que talvez apresente as mudanças mais nítidas de personalidade, expondo gradativamente seu lado sensível e afetivo, sem que eles sobrepujem de todo seu lado incisivo e determinado de comandante da Band of the Hawk.

Criada numa vila pobre entre as montanhas, viveu na pele a fome com as dificuldades de subsistir em um solo infértil, altos impostos aos camponeses com o pretexto de ajudar o exército na guerra e um áspero inverno que levava morte a muitos. Sua vila era constantemente atacada por se localizar na fronteira, em meio a conflitos, tendo suas casas e abastecimentos queimados. Além disso, um nobre que rodeia o local se interessa por ela. Filha de uma família grande com seis irmãos, Caska é levada sob o pretexto de que a faria criada…

Kentaro não poupa em criar personagens complexos e bastante conscientes de si, e também não se omite de colocar a realidade crua da condição da mulher, sobretudo em um contexto medieval em que os derrotados têm como único destino a escravidão, e Miura faz-nos ter a dimensão do peso que é ser mulher, principalmente uma mulher no campo de batalha dominado por homens de toda índole.

E é na primeira tentativa de estupro, quando tudo parecia já irreversível, eis que surge a figura que, segundo Caska, parecia um anjo retirado dos contos de fadas, contestando a “autoridade divina do nobre” e oferecendo a espada como o único destino possível (o que é uma solução muito diferente de um anjo). É através dele, que Caska passa de alguém que aguenta e espera, para alguém que luta e conquista.

A longa jornada para realização de um sonho

“Desde tempos imemoráveis, o homem tem protegido os pequenos ferimentos em seu coração com o empunhar de uma espada. Pelos dias que virão e que estão além de quaisquer esperanças, o homem irá empunhar uma espada para que possa sorrir durante sua jornada”.

A infância de Griffith é desconhecida, sabe-se que nasceu na plebe e que tudo que nos é apresentado é um pequeno fragmento de uma memória infantil, a brincar de cavaleiro quando vê um falcão sobrevoar a vila em direção ao cume de um castelo. Parece que, ainda criança, recebe o behelit de uma velha cigana e o leva consigo durante suas batalhas.

Griffith é um plebeu que sonha ter seu reino próprio, que, considerando todos os obstáculos do contexto, inclusive a engessada estrutura social, parece impossível a um homem comum que veio da plebe conseguir tal feito. Porém, sua habilidade de estrategista militar lhe confere cada vez mais créditos, e o que antes era um devaneio aos poucos se torna uma realidade próxima.

Griffith passa de um líder de um bando de mercenários para se tornar parte do exército oficial de Midland, gradativamente suas vitórias no campo de batalha lhe permitem galgar posições, de mero mercenário para cavaleiro e visconde, até enfim se tornar general militar do reino e adquirir a categoria de nobre, assim como seus principais membros. E claro, não sem incomodar radicalmente militares do exército oficial e nobres conservadores.

Dentro das muralhas do castelo surgem conspirações, e Griffith sobrevive a duas tentativas de assassinato. E é dentro do castelo que se desvela sua faceta mais maquiavélica, sendo responsável por inúmeros assassinatos de nobres e até mesmo da rainha. Toda astúcia e perspicácia que lhe permite sobreviver dentro do castelo não é mais do que uma extensão da luta no campo de batalha.

“Vejo que os senhores se acostumaram a planejar sobre as pranchetas. Estamos vivendo uma guerra, não há camarotes no campo de batalha. Na guerra, quem morre não são os Reis, os Nobres ou os Plebeus, quem morre são perdedores”. Griffith.

Essa atitude altera e arrogante permite a Griffith grandes conquistas, uma das quais é se aproximar e falar particularmente com Charlotte, a princesa de Midland, e talvez o atalho mais conveniente para a realização do seu sonho, enquanto Guts aceita fazer o trabalho sujo de assassinar Conde Julius e, acidentalmente, seu filho Adonis.

A amizade entre ambos se fortalece ao longo de três anos em batalhas. A admiração é mútua, ainda que Griffith seja sempre mais dúbio que Guts. Guts passa a contemplar uma vida em busca de um propósito, e Griffith não raras vezes arrisca sua vida para salvar Guts. Mas é na conversa com Charlotte que Griffith expõe sua ideia do que seria um verdadeiro amigo, e que também será o motivo da saída de Guts do bando, no futuro.

Os dois precisam estar no mesmo patamar, essa conclusão de Griffith incute Guts à ideia de busca do seu próprio sentido de vida, um sonho e uma busca que seja só sua, a sua luta e de mais ninguém. E é aí que chegamos ao conflitante momento de despedida, logo após a grande vitória da batalha de Doldrey. E é incrível como Miura cria uma sintonia sutil entre os dois, na qual o pensamento de Griffith se torna a imagem invertida do último ataque derradeiro entre os dois. E, assim, pela primeira vez, Griffith tem sua derrota e talvez não mais saiba se erguer…

A despedida entre os dois foi tão incisiva que as ações que se seguem após isso mostram um novo Griffith, agora angustiado e aflito, e que colocará tudo a perder cometendo um erro mortal que o impedirá – por certo não definitivamente – de realizar o seu sonho. Inicia-se, então, uma nova fase de declínio do Bando do Falcão, que levará para o desfecho mais aterrorizante da história de Berserk – o Eclipse, tornando Griffith um dos antagonistas mais odiados de todo o Mangá.