Recomendação de Filme: Somos Todos Diferentes/Como Estrelas na Terra

12696275_946779265404120_485123483_nConfesso que não estou muito informado sobre o cenário do cinema indiano, lembro que de cinema indiano o que vi há muito tempo foi uma versão de Chuck Norris, produzido pela indústria de cinema indiano Bollywood, e outros filmes do gênero muito bizarros. Mas certamente Taare Zameen Par – título original, ou em inglês Every Child Is Special – foi, para mim, uma grande descoberta. Fazia tempo que não via um filme tão simples e tocante, de uma sensibilidade aguçada, repleto de música e poesia. Taare Zameen Par é um filme de tirar lágrimas de corações gelados. Infelizmente o filme não foi lançado aqui no Brasil, mas uma boa alma legendou e disponibilizou na internet.

O filme foi lançado em 2007, e em 2010 seus direitos foram comprados pela Walt Disney Home Entertainment, e distribuído mundialmente. Dirigido por Aamir Khan, o qual também atua no papel de professor substituto de artes plásticas, Nikumbh, Somos Todos Diferentes Como Estrelas na Terra conta a trajetória do pequeno Ishaan (Darsheel Safary), um menino de nove anos que é disléxico. Ishaan é um menino solitário e aparentemente levado, se mete em confusão constantemente e é muito desatento e atrapalhado, acaba levando sempre a culpa mesmo quando injustiçado. Apresenta, também, algumas dificuldades motoras e é considerado indisciplinado e preguiçoso.

Taare Zameen Par 2007 720p BluRay nHD x264 NhaNc3.mkv_000627713Na família, seu irmão mais velho, Yohaan Awasth (Sachet Engineer), é o oposto de seu irmão caçula – disciplinado e com as melhores notas na escola, tem a atenção de seu pai, Nandkishore Awasthi (Vipin Sharma), que deposita nele grandes expectativas de uma carreira como tenista. Assim, Ishaan é visto como a ovelha de negra da família, e ainda que sua mãe Maya Awasthi (Tisca Chopra) tenha uma relação materna bastante afetiva com Ishaan, ele não escapa dos estereótipos negativos como “mimado, preguiçoso e burro”. Porém, não é preciso seguir muito a diante para nos darmos conta de que o pequeno tem uma sensibilidade apurada e vê o mundo e tudo que o cerca de forma diferente e perspicaz. E para fugir de um ambiente e valores sociais que o colocam constantemente como figura não adequada, vê na pintura o seu momento de fuga e felicidade através da arte.

still34Entretanto, é no ambiente escolar, tradicional e disciplinado, que Ishaan passa por inúmeros constrangimentos, e Aamir Khan coloca bem essa dificuldade de adaptação seja através da música – e talvez a música seja um dos pontos mais fortes do filme, com letras que fazem referência direta a circunstância pela qual Ishaan está passando -, seja pela personalidade atrapalhada e dispersa de Ishaan, que cria uma atmosfera tragicômica, mas não menos desagradável.

zvezdochki_na_zemle_02Ishaan faz parte daqueles cuja existência dirige a atenção para fantasia, para um mundo de inúmeras perspectivas e possibilidades, repleto de imaginação, e esse mundo só pode ser explorado com o “tempo parado”. Do lado oposto, estão aqueles que precisam do pulso firme, do trabalho disciplinado. Para eles, o mundo é uma batalha e precisa ser vencido, para isso não podem ficar para trás ou serão preteridos, assim é “o mundo”. O mundo da fantasia, da atenção dispersa – que significa a atenção não voltada a práticas que a sociedade privilegia – é o mundo oposto à corrida veloz da pós-modernidade, é um mundo que permite o voo da inteligência contemplativa. Ou como diz a letra de fundo enquanto Ishaan se atrasa para escola, distraído na sua imaginação: “Eles não são escravos do tempo, são livres, tem reuniões com as borboletas e debates com as árvores”.

zvezdochki_na_zemle_05Não é preciso deduzir que o modelo liberal de competição pelo mercado é uma preocupação (até certo ponto legítima) da família de Ishaan, e que por ignorância do que se trata a dislexia, todo o mau rendimento escolar é atribuído unicamente a Ishaan e ao seu comportamento, ele repete o terceiro ano e tira sempre notas baixas. Incompreendido pela família – e frise-se que Armin Khan não segue pelo estereótipo de “família puramente ignorante”, pois é evidente a preocupação de sua mãe com o desenvolvimento da leitura e escrita, ainda que ela seja um pouco impaciente, não por má-fé, mas por ignorância – e também pelos professores, Ishaan é alvo de constrangimentos e é colocado frequentemente de castigo.

Ao ser convidado a ler sentenças de um livro para assinalar adjetivos, Ishaan diz que “as letras estão dançando”. A professora, impaciente, interpretando o fenômeno como mais uma travessura, tira-o de sala. Taare Zameen Par é uma crítica severa ao ensino estrutural tradicional, no qual, no mais das vezes, os alunos são considerados iguais em tempo de aprendizagem, e que consiste seu ensino como um processo de reprodução de conhecimento de forma automatizada e mecânica. Como professor, considero muitos aspectos do ensino tradicional, os quais foram perdidos no atual sistema de educação, válidos e aplicáveis, principalmente se se considera que muitos dos seus críticos se empenham mais em criar espantalhos do que entendê-lo de fato, e também tenho lá minhas ressalvas com métodos pedagógicos como o construtivismo, mas isso é matéria para outra ocasião.

still10Porém, a crítica de Taare Zameen Par não deixa de ser apropriada para se pensar que cada aluno tem suas próprias dificuldades e necessidades, assim como qualidades e potencialidades, e é papel do professor e da escola ter o aporte necessário para diagnosticar e saber lidar com estes casos. A dificuldade de lidar com a diferença e valorizar só quem está dentro dos padrões normais, a inadequação do sistema de ensino e da família são o grande foco do filme. Narrado com imagens e músicas que dão encanto e lirismo ao filme, a cena em que Ishaan foge da aula de matemática para descobrir a beleza do mundo afora pelas ruas da Índia, ao som de Mera Jahan (meu mundo), é uma das mais belas e cativantes cenas sobre o processo de conhecer o mundo.

[2011.02.18_18.28.50]Entretanto, seu encanto com o mundo e sua fuga à pintura vai gradativamente se perdendo quando seus pais decidem colocá-lo num colégio interno, cujo lema é “disciplinar e domar cavalos selvagens”. A separação traumatizante de Ishaan da família confere uma das cenas mais emocionantes do filme, e a música Maa (mãe) dá o tom dramático da perda do laço afetivo e materno. A brilhante atuação de Darsheel, uma descoberta e tanto para uma criança, nos dá toda a sensação de desamparo e angustia, é impossível não ter empatia e dividir dos sentimentos de Ishaan diante de seu olhar cabisbaixo e fixo, como se fosse gradativamente perdendo a alma.

adk3vO0F_zps49076e5e.png~originalE é exatamente isso que acontece quando Ishaan passa a frequentar o colégio interno. O pequeno passa por inúmeros constrangimentos e punições severas – a princípio se revolta, e sem entender o que se passa, num mundo de pessoas incompreensíveis que o tornam cada vez mais só, sua autoestima vai sendo minada até adquirir indícios de um grave quadro depressivo: Ishaan, então, deixa de lado a pintura, que era o que mais gostava de fazer.

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Aamir Khan
sabe bem transitar pelo drama e pela comédia, sabe utilizar a dosagem certa entre um e outro, e a atuação do pequeno também só tem a contribuir. E é quando percebermos o vislumbre de um suicídio, ao ver Ishaan fixamente olhando o vasto precipício da sacada do colégio, que Aamir Khan sinaliza que o limite chegou, que a dosagem de drama precisa ser remediada com a esperança da poesia e da música. E não é à toa que Aamir incorpora o professor substituto de arte: para Nietzsche, a arte é reconciliadora, permite ao homem cultivar sua vitalidade. É por meio dela que ishaan aos poucos recupera sua alegria e sensibilidade pela vida através do trabalho diferenciado do professor Nikumbh.

Taare-Zameen-Par-Somos-todos-diferentes-1Professor de uma escola para alunos especiais, Nikumbh nos mostra o quanto é necessário lidar com a diferença e ter o devido cuidado com o outro, mesmo que ele não se enquadre nos padrões de uma sociedade que prepara seus filhos para competir. Também disléxico, logo percebe que Ishaan possui algum problema e vê nele o reflexo do que sofreu na infância. Daí em diante, vemos um trabalho de conscientização da dislexia, cuidado e recuperação da autoestima de Ishaan. A aula em que Nikumbh expõe célebres cientistas, músicos e escritores, ao longo da história, que tiveram dislexia e que de alguma forma superaram suas dificuldades e sacudiram o mundo com suas ideias inovadoras atrai a atenção de Ishaan.

taare-zameen-parMas o trabalho de superação das dificuldades de Ishaan diz muito mais sobre as relações interpessoais, sobre o cuidado que estamos tendo com as pessoas, do que uma simples conscientização do que é dislexia. E Nikumbh ilustra isso ao conversar com o pai de Ishaan, questionando a palavra “cuidar”, para que não aconteça com ele o que acontece com as árvores das Ilhas Salomão, que morrem após as pessoas gritarem à sua volta. É uma pena constatar que ainda hoje milhares de crianças passam por experiências similares ao que Ishaan passou. A destruição da inteligência, da capacidade imaginativa para inculcar nela moldes prontos ou conhecimentos sistematizados é uma das coisas mais perversa e infelizmente muito comum ainda.

05. Somos Todos DiferentesO final não poderia ser mais surpreendente e emocionante – e mais uma vez vemos a arte como reconciliadora. A competição de arte proposta pelo professor Nikumbh cria toda uma atmosfera de leveza e confraternização entre professores, diretores, pais e alunos. Aamir está longe de criar dicotomias entre “conscientes x ignorantes”, “progressistas x atrasados”; pelo contrário, vê na arte a possibilidade de aprofundamento consigo e com as pessoas ao seu redor.

Desse modo, os professores mais tradicionais reduzem o seu distanciamento dos alunos, são caricaturados nos desenhos e pela primeira vez parecem ser aproximar mais deles e mostrar suas potencialidades escondidas, como no caso do professor de português Sen, que em meio a pintura demonstra ter uma grave voz de tenor ao cantar la donna è mobile. E não é à toa que a música de fundo fala que “o propósito está onde encontrar felicidade”.

99a40af69fb50af12f2966ebe8b90ef5Taare Zameen Pa é muito mais do que um filme sobre um menino disléxico. Nos ensina que podemos e devemos valorizar a diferença, e nos mostra também os caminhos possíveis tanto para destruir uma alma quanto para edificá-la em nossas relações interpessoais. Cabe a nós, então, saber usar as palavras e saber cuidar, para que as árvores não venham a secar e morrer.

Filme disponível no Youtube:

 

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