Crítica | A Bruxa

thewitch2Aviso: O texto abaixo contém spoilers, leia por sua conta em risco.

É revigorante e ao mesmo tempo frustrante ver um filme como A Bruxa nos cinemas. É revigorante por que é ótimo ver o gênero de horror tentando inovar, saindo de suas formas manjadas de sustos baratos e apostando numa atmosfera mais angustiante, carregada de simbolismos, privilegiando o terror psicológico. É frustrante, porém, perceber que o grande público ainda não está preparado para algo assim. Digo isso pois a cara de decepção de boa parte da galera na saída da sessão que eu fui não simplesmente condiz com a qualidade do filme.

Ok, isso pode (e sei que vai) soar um pouco babaca… Mas eu particularmente acredito que o quanto cada pessoa vai de fato gostar e embarcar na proposta do filme vai separar os verdadeiros amantes da sétima arte dos demais espectadores. Pra quem vai ao cinema em busca de um simples entretenimento talvez seja melhor mesmo evitar A Bruxa. Não me entendam mal, não há absolutamente nada de errado nisso. Mas se você estiver esperando por jump scares, ou algo mais próximo do convencional, provavelmente irá se decepcionar. E muito. Apesar do marketing o vender como um filme de terror, o longa se encaixa bem melhor na categoria de arte. A meu ver ele está muito mais próximo dos filmes do Michael Haneke e do Lars Von Trier do que os do James Wan, por exemplo. E é isso o que você tem que ter em mente quando for assisti-lo.

The-witch-movie-reviewBaseado em uma série de documentos e transcrições de relatos reais do século XVII, o filme ambientando em 1630 acompanha a mudança de uma família para uma região inóspita na Nova Inglaterra, logo após serem expulsos do vilarejo em que moravam, onde estranhos eventos começam a acontecer. A história se inicia com o julgamento do patriarca da família e seu banimento da comunidade. Não fica muito claro o real motivo de sua expulsão, mas é sugerido que o extremismo religioso com que o pai interpreta a bíblia seja um dos motivos.

Só pelo modo como o estreante diretor Roger Eggers conduz esses instantes iniciais, filmando seus protagonistas de costas, utilizando-se de uma paleta de cores acinzentada para criar uma ambientação mais opressiva e deprimente, com belíssimas e longas tomadas que evidenciam o clima de desolamento nos arredores da floresta, dá para termos uma ideia do tom que o filme pretende seguir. Trata-se de uma abordagem mais sutil, marcada por um ritmo mais lento e reflexivo do que a maioria das outras produções do gênero. Escrito pelo próprio Eggers, o roteiro é extremamente competente ao associar religiosidade e ocultismo num conto que tanto remete às velhas fábulas infantis, quanto aos maiores temores herdados da moral cristã.

No isolamento a que estão submetidos, a família começa a se deteriorar à medida que a presença maligna que habita a floresta que os cerca começa a testa-los, fazendo um a um questionarem sua fé e confrontarem seus próprios pecados. Nesse sentido, o filme é muito mais um drama familiar fortíssimo do que uma obra de terror. O horror está lá, ainda que mais subjetivamente, mas o coração do filme é mesmo o conflito interno vivenciado por esses personagens. Acompanhar o modo como a paranoia vai se instaurando e desestruturando a relação familiar, e o clima de tensão e desconfiança vai gradualmente aumentando até o fatídico final é um dos pontos altos do longa. O filme conseguiu me prender e envolver o suficiente para que quando chegasse o momento em que ele começa a desmantelar de fato essa família, eu realmente me importasse com o que seria desses personagens. E em se tratando de obras de terror, isso é um feito e tanto.

mov_thewitch2_2512Além do roteiro, eu dou crédito às ótimas atuações do elenco por isso. Todos impressionam positivamente com sólidas atuações, demonstrando uma incrível naturalidade ao falar em um inglês arcaico. Até mesmo as crianças. Os gêmeos Mercy (Ellie Grainger) e Jonas (Lucas Dawson), que não por coincidência lembram muito as gêmeas do Iluminado, brincando e cantarolando uma sinistra canção para o bode Black Philip, são adoráveis e ao mesmo tempo assustadores. A mãe Katherine, interpretada pela atriz Kate Dickie (a Lysa Tully de Game of Thrones) é a que mais demonstra sinais de abalo emocional com a mudança e o rapto do filho caçula pela bruxa, com uma expressão de constante desespero, como se estivesse a ponto de explodir. Mas o trio composto pelo pai, o irmão e a irmã são os que saem melhores para mim. O pequeno Harvey Scrimshaw, o filho do meio Caleb, consegue expressar bem o sentimento de confusão do seu personagem. A cena dele delirando após ser possuído pela bruxa é ótima. Começa teatral, mas termina performática. Já a construção do pai, William (Ralph Ineson), me intrigou bastante. Dado o contexto da época, achei que fossem usar seu fundamentalismo religioso para o vilanizar, mas o filme acerta em utilizar isso apenas como um de seus muitos aspectos. Ele é até bem mais humano do que eu esperava (quer dizer, desconsiderando o fato que ele foi capaz de prender os filhos no celeiro), com uma preocupação genuína pela sua família. O momento em que ele aparece chorando, rezando pelos filhos e se oferecendo para ser punido no lugar deles é desolador.

Mas o grande destaque mesmo foi a jovem Anya Taylor-Joy, no papel da filha mais velha, Thomasin. Ela consegue transmitir inocência e ingenuidade num instante, e num segundo depois ser maliciosa e ardilosa de um modo que te deixa sempre na dúvida a seu respeito. O filme também aborda fortemente a sua transição para a idade adulta, e ela faz um ótimo trabalho demonstrando todas as inseguranças e transformações dessa etapa.

the-witch-image-3Eu amo o fato de que apesar de deixar muita coisa aberta a interpretação, o filme não deixa na dúvida a existência ou não da bruxa do título. Ainda que dê para se traçar alguns paralelos e metáforas com a abordagem que a trama faz do cristianismo, Eggers deixa claro que ela existe e é uma ameaça real, não uma alucinação ou fruto da imaginação de alguém como em outros terrores recentes. E o faz da maneira mais aterradora e angustiante possível. A cena do sacrifício do bebê é assustadora, de um modo profundamente perturbador. Mesmo não mostrando algo que seja exatamente violento graficamente, as imagens que ele cria são fortes e sugestivas o suficiente para tornar a cena aterrorizante e difícil de digerir. Sério, eu demorei alguns dias para deletar essa e a cena do corvo da minha memória.

Toda a parte técnica do filme também é muito bem feita. Da fotografia dessaturada, cheia de tons de cinza à trilha inquietante que emula um pouco dos filmes do Kubrick, tudo auxilia no aumento da tensão e sensação de isolamento. As cenas dentro da casa são primorosas, com a iluminação sendo feita apenas por velas ou uma pouca luz natural que entra durante o dia, aumentando o clima claustrofóbico do casebre e favorecendo o suspense psicológico.

The_Witch_stillHonestamente não sei dizer o que me impressionou mais nesse filme, toda a deslumbrante parte estética ou as sutilezas do roteiro. Eggers está realmente de parabéns. Julgando por esse primeiro trabalho ele realmente parece ser o pacote completo. O cineasta não só constrói uma narrativa que não tem medo de seguir no seu próprio ritmo, provocando medo do desconforto que extrai  das situações e sugestões que cria ao longo do caminho, como ainda entrega uma obra carregada de simbolismos.

Vem do temor religioso muito do horror que vemos e sentimos no filme. Se o filme faz questão de frisar a crença fundamentalista seguida pela família e suas incongruências, enfatizando os personagens orando e pedindo perdão por seus pecados constantemente é porque ele também parte da premissa que a natureza do homem já é corrompida desde o seu nascimento. É um pensamento presente desde o início da doutrina cristã, e bastante coerente dada a preocupação com que o diretor procura manter a história próxima dos relatos que levou cinco anos coletando e do contexto religioso da época.

A bruxa, vista por essa ótica, não é apenas a personificação do mal, mas a representação da corrupção do homem. O final torna isso ainda mais claro, mas há cenas bem sugestivas ao longo de toda a projeção que corroboram essa ideia. Todos ali, sem exceção, são pecadores de alguma forma. O pai é orgulhoso. Thomasin demonstra ingenuidade em certas horas, mas tem arroubos de raiva com os irmãos menores, regozijando-se ao amedrontá-los. Caleb visivelmente nutre pensamentos incestuosos pela própria irmã. Não é à toa que seu contato com a bruxa denote uma forte conatação sexual. É através do desejo carnal que ele é tentado, e fraqueja. A cena do garoto agonizando em meio a um delírio religioso terminando com ele vomitando uma maça – tanto uma alusão ao fruto proibido do pecado original, quanto a maça envenenada do conto infantil – é emblemática.

calebTalvez o mais macabro desse conto seja mesmo a percepção de que a maior ameaça não vem do mundo externo, e sim do conflito interno, dessa natureza falha que pode ser usada contra você. É na ideia de que o mal pode assumir as mais variadas formas para nos dissuadir, seja ela a de uma lebre, um bode, ou uma mulher no meio da floresta, que o longa cria seu verdadeiro terror.

O filme de certo modo acaba assim assumindo um caráter um tanto quanto fatalista perante a condição humana. Pode ser apenas a minha leitura dos eventos, mas a reação do pai no final ao largar o machado e deixar-se ser chifrado pelo bode simboliza tanto a entrega a sua fé, como que se estivesse confiando tudo às mãos de Deus, quanto o reconhecimento de que não há para onde fugir. Não há como expurgar o mal que há dentro nós. Sob essa lógica, estamos todos condenados.

the-witch-anya-taylor-joy-bloodyO final, ainda que totalmente coerente com a história, destoa um pouco do resto em termos de narrativa. Mesmo apreciando algumas das escolhas do cineasta na hora de filmar o desfecho do filme – eu adorei o modo como ele manteve o foco no rosto de Thomasin durante toda a conversa no celeiro deixando a figura do bode oculta pelas sombras – não há como não dizer que na tentativa de criar um momento de catarse, ele acabe revelando muito mais do que deveria. Não chega a ser algo ruim, até porque toda a construção da cena e a própria expressão facial da jovem Anya Taylor-Joy nos instantes finais, um misto entre êxtase e realização, ilustra perfeitamente o conflito entre virtude e pecado, que o filme vinha construindo desde seu início. A sua ascensão aos céus junto com as outras bruxas da irmandade também serve como uma bela de uma metáfora à libertação feminina do julgo a que estavam sujeitas, além de marcar de vez sua transição de menina para mulher. Porém, eu achei meio desnecessário o filme nos dar essas confirmações visuais, visto o quão bem ele estava se saindo simplesmente as sugerindo.

Não que isso desmereça o resultado final, A Bruxa é um dos trabalhos de estreia mais impressionante que eu me recordo de ter visto nos cinemas. Mas para mim teria sido muito mais interessante se tivessem optado por um final em aberto. Sério, se o filme tivesse terminado logo após a cena da morte da mãe, quando Thomasin entra em casa desnorteada, coberta de sangue e senta-se à mesa de jantar em um completo e agoniante silêncio, teria sido perfeito. Naquele instante fica claro que não há mais saída para a jovem. O mal havia triunfado. Ele havia conseguido se instaurar e corromper totalmente aquela família. Ela já não tinha para onde ir, nem a quem recorrer. A cena final não chega a ser inteiramente gratuita, mas é um tanto quanto dispensável quando o publico poderia inferir sobre a real natureza da bruxa e do Black Philip com tudo o que já havia sido mostrado.

The_Witch_R5_31Enfim, para verdadeiros amantes do cinema A Bruxa é um filme obrigatório para incluir em sua lista. É denso, angustiante, lindamente filmado e atuado. Que seja mesmo um novo começo para o cinema de terror. E vale muito a pena também ficar de olho no diretor Roger Eggers. Se em seu trabalho de estreia ele foi capaz de produzir algo desse nível, só posso ficar no mínimo ansioso para ver até onde ele pode chegar com um pouco mais de experiência. Se mantiver a qualidade que apresentou aqui, os cinéfilos do mundo inteiro só tem a agradecer.

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