O retorno triunfal de M. Night Shyamalan…
Aviso: O texto abaixo contém spoilers, leia por sua conta em risco.
Comparado a nomes como Alfred Hitchcock, M. Night Shyamalan despontou em Hollywood como um dos diretores mais promissores de sua geração. O Sexto Sentido não foi apenas um enorme sucesso de público e crítica, como também sedimentou o nome do cineasta e do pequeno Haley Joel Osment na cultura pop. Corpo Fechado, Sinais e A Vila são provas do talento inegável de Shyamalan como contador de histórias, mas o seu sucesso acabou por torná-lo refém de sua própria fórmula. Seus filmes viraram sinônimos de “plot twists”, com espectadores esperando por finais “mind blowing” em todas suas produções e que se sentiam traídos quando o desfecho não correspondia a suas expectativas. Junte isso ao fato do diretor parecer ter realmente perdido o domínio de sua narrativa em filmes como o fraco “A Dama na Água” e os desastrosos “Fim dos Tempos” e “O Último Mestre do Ar”, que é compreensível por que seu nome já não despertava o mesmo interesse como antes – Depois da Terra chegou ao extremo de nem sequer usar o nome do diretor em seu marketing de divulgação.
Considerado por muitos o seu retorno triunfal, Fragmentado não é apenas a volta do diretor aos holofotes, como é também um de seus melhores filmes em anos. O longa conta a história de Kevin (James McAvoy), um homem com transtorno dissociativo de identidade, portador de vinte e três personalidades distintas, que sequestra três adolescentes no estacionamento de um Shopping.
A trama se desenrola basicamente no que parece ser o porão da casa onde o personagem de McAvoy mantém as garotas reféns. É notável como o filme funciona bem dentro desse espaço confinado, criando uma verdadeira atmosfera claustrofóbica. O modo como Shyamalan filma faz parecer como se estivéssemos presos no quarto junto com as meninas. O desconforto que o filme nos obriga a sentir é uma experiência realmente incomum, pelo menos em se tratando de produções direcionadas ao grande público. A tensão e o suspense extraído da relação entre o raptor e suas vítima em muitas horas me remeteu à filmes sadistas de terror da década de setenta como “Aniversário Macabro”, “Quadrilha de Sádicos” e “A Vingança de Jennifer”. Obviamente, que sem a mesma dose de nudez, sadismo e sangue.
Shyamalan se mostra mais eficiente do que nunca, conseguindo através de enquadramentos e close-ups criar um filme verdadeiramente angustiante. Eu acho genial como o cineasta trabalha o medo através da sugestão, fazendo com o que acontece fora do campo de visão do espectador seja o elemento mais assustador. Mostrar Kevin por pelas frestas da porta, fora de quadro ou através de reflexos no espelho também é um recurso interessante, e bem sugestivo dada a sua condição.
Contando com algumas poucas cenas fora do cativeiro, como as visitas de Kevin ao consultório de sua psicóloga, a Drª Karen Fletcher (Betty Buckley) e eventuais flashbacks do passado de Casey (Anya Taylor-Joy), uma das garotas mantidas em cativeiro, o filme se sustenta totalmente em cima das ótimas atuações do elenco. Principalmente a de McAvoy. Fragmentado é inegavelmente um dos melhores trabalhos de sua carreira.
A naturalidade com que ele consegue interpretar e transitar pelas diferentes identidades de Kevin é assombrosa. Ainda que não vejamos as tão alardeadas vinte três personalidades do personagem, as que aparecem em tela são tão complexas e distintas entre si, cheias de maneirismos próprios, em um trabalho de composição realmente soberbo. McAvoy demonstra um talento incrível, mudando sua voz, postura corporal e expressão facial em cada uma delas.
Dennis é o sujeito frio, com um claro transtorno obssessivo-compulsivo e identificado como pedófilo. Srª Patricia é uma mulher altiva e extremamente manipuladora. Hedwig é um garoto inocente de nove anos, com a língua presa, que é facilmente enganado pelos outros. Barry é o simpático estilista, aparentemente gay, e mais bem ajustado das identidades de Kevin. A cena do consultório na qual a Drª Fletcher faz Dennis finalmente se revelar para ela é uma das minhas favoritas. Apenas com o olhar e uma mudança de postura na cadeira, McAvoy é capaz de alternar completamente entre os personagens.
A jovem Anya Taylor-Joy e a veterana Betty Buckley também fazem um ótimo trabalho. Anya, já havia se mostrado um talento promissor no excelente “A Bruxa”, e agora comprova que é mesmo uma estrela em ascensão. Sua Casey carrega no olhar uma melancolia constante. Eu realmente gostei de como sua personagem foge dos padrões clássicos de mocinhas indefesas de filmes de terror. Todas as suas ações são bem pensadas e realizadas, feitas após longa observação do espaço ao seu redor. O modo como ela interage com Hedwig, tentando ganhar sua confiança também é excelente.
Já Betty Buckley confere toda uma naturalidade e leveza à Drª Fletcher. A personagem é a melhor psicóloga que eu vejo nos cinemas em um bom tempo. A relação da terapeuta com seu pacienta é simplesmente excelente. Toda a forma como ela conduz a terapia e mostra-se receptiva as visitas de Kevin, dando espaço para que ele se sinta seguro e confiante o suficiente para poder falar é ótima e totalmente verossímil. Talvez por isso toda aquela conversa de “potencial desconhecido do cérebro” que a personagem tanto fala tenha me incomodado tanto.
Essa foi uma das poucas coisas que me incomodou durante o filme. O discurso de Fletcher sobre como indivíduos com “múltiplas personalidades” podem alterar sua química corporal (?) é pura “pseudociência”. Existem casos reais similares a ideia que o filme tenta vender, como a da mulher cega há mais de treze anos que ao assumir a personalidade de um jovem adolescente foi capaz de voltar a enxergar – Porém, há toda uma discussão de sua cegueira ser de ordem “psicológica”, e não derivado de uma real lesão. Só que longa extrapola essa ideia a níveis fantásticos demais para mim. Não que isso seja um problema, afinal estamos falando de uma obra de ficção, então certa dose de suspensão de descrença é necessária, mas como alguém que estuda essa área, não consegui engolir muito bem essa premissa. Principalmente por que teria sido muito melhor a meu ver, se o filme ao invés de tentar tornar plausível através de um viés científico a “transformação” de Kevin na Besta, tivesse investido mais tempo no aspecto sobrenatural da trama. Mas sendo bem honesto… Esse teria sido o meu único ponto negativo em relação ao filme como um todo, se não fosse o plot twist, que justifica brilhantemente toda essa história.
Antes de falar da cena final, eu acho válido comentar como o filme trabalha temas fortes e delicados de forma madura. Eu realmente gosto da sutileza com a qual o filme trata o tema do abuso infantil. Na metade do filme para mim já era óbvio que algo assim havia acontecido no passado de Casey, mas o momento da revelação ainda sim consegue ser bem dramático e efetivo.
A ideia da “Besta” ver um “igual” em Casey no clímax do filme é muito simbólica para mim. Ambos são reflexos do que sofreram na infância, mas manifestam reações totalmente diferentes ao lidar com seus traumas. Enquanto Kevin criou diferentes personalidades para poder lidar com os seus, Casey se mantém isolada de tudo e todos. Duas reações distintas, mas totalmente plausíveis, para uma mesma situação.
Eu gosto de pensar que Casey finalmente denunciou seu tio na cena em que a policial lhe avisa que ele havia chegado para levá-la para casa, já que seu olhar enigmático no final também sugere que tudo o que ela passou ali não era nada comparado aos horrores que ela vive em casa e retornaria em breve. Deixar essa questão em aberto é uma boa sacada, mas provavelmente deve perder parte de seu efeito no futuro, já que o retorno da personagem na continuação foi confirmado pelo diretor semanas atrás (eu já falo mais sobre isso).
Mas não tem como eu não comentar a cena final do filme. A essa altura não deve ser mais novidade para ninguém que Fragmentado se passa no mesmo universo de Corpo Fechado. A cena mostra clientes em uma lanchonete assistindo notícias do sequestro das três garotas. A repórter explica a rara condição de Kevin, agora alcunhado de “A Horda”, quando alguém diz “Isso não parece aquele caso com o sujeito da cadeira de rodas que aconteceu uns anos atrás. Deram um nome esquisito para ele também. Qual era mesmo?”, a câmera então se aproxima das pessoas no balcão, e vemos Bruce Willis, reprisando o papel de David Dunn, que responde “Sr. Vidro”.
Essa reviravolta final é um verdadeiro toque de gênio do Shyamalan. Não só por fazer a história que estávamos assistindo ser uma sequência direta de um dos filmes mais cultuados do diretor – uma continuação de Corpo Fechado vem sendo prometida há anos. Seu brilhantismo está justamente em mudar toda a ótica com a qual assistimos ao filme. O que era apenas um suspense com toques sobrenaturais, se transforma assim na história de origem de um vilão e parte de um mundo muito maior, onde a existência de um individuo capaz de resistir a tiros de espingardas e capaz de escalar parede é completamente aceitável – dentro desse “universo” inspirado em heróis e vilões de quadrinhos de Corpo Fechado, o discurso da Drª Fletcher faz total sentido. Isso sim que é subverter expectativas.
O mais incrível é que os sinais estavam lá o tempo todo. Tem o pai de Kevin, que supostamente morreu em um trem – o filme apenas diz que ele partiu –, o que pode ser uma conexão com o acidente provocado por Samuel L. Jackson em Corpo Fechado. Há também as similaridades entre os pôsteres dos dois filmes e o próprio tema central de ambas as histórias, que exploram personagens descobrindo tudo aquilo que podem fazer e qual o seu lugar no mundo.
Contudo, todo esse world-building só funciona por que o diretor entrega um excelente filme. Fragmentado é um filme que funciona por si só, extremamente competente no que se propõe a fazer. É a volta do Shyamalan a sua velha forma, mostrando que ele ainda sabe como poucos entreter e surpreender seus espectadores.
O cineasta anunciou há algumas semanas que o roteiro da sequência de “Fragmentado” e “Corpo Fechado”, intitulada Glass, já está pronto, e que tanto James McAvoy e Anya Taylor-Joy como Bruce Willis e Samuel L. Jackson irão voltar para reprisar seus papéis. Eu não poderia ficar mais animado com isso. Primeiro porque Corpo Fechado é além de meu filme favorito do diretor, uma das mais belas homenagens a heróis de quadrinhos já feita. Mas principalmente por que tenho certeza que esse filme deve explorar temas mais profundos do universo dos “super-heróis”, do que simplesmente colocar David Dunn contra A Horda. É ou não é para ficar ansioso?
Que venha o Shyamalanverse!