Crítica | Jessica Jones – 1ª Temporada

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Aviso: O texto abaixo contém spoilers, leia por sua conta em risco.

Demorou, mas finalmente terminei de assistir Jessica Jones, a nova parceria entre Marvel e Netflix, e venho aqui compartilhar minhas impressões com vocês.

Antes de mais nada tenho que ser sincero e admitir que não conhecia muita coisa sobre a personagem. Tinha a visto em algumas HQs dos Novos Vingadores, sabia que ela era casada com o Luke Cage com quem tem uma filha, e que ela tinha estudado com um tal de Peter Parker (por quem inclusive ela tinha uma certa paixonite). E só. Não tinha menor ideia do background, ou dos vilões do seu universo. Então, foi realmente uma surpresa quando vi o quão densa era essa série. Eu sabia que o selo Marvel Max, onde a heroína se originou, trabalhava com temas mais adultos, mas honestamente, não esperava que fosse tanto.

AgN8LCGJessica Jones (Krysten Ritter) é uma detetive particular, que adquiriu poderes ainda na adolescência após um acidente que matou toda sua família. Ela é desbocada, sarcástica, e usa o álcool para ajudar a aliviar o peso de suas culpas e traumas. Ritter está ótima no papel. Ela consegue transmitir força e vulnerabilidade nos momentos certos, e dá conta de toda a bagagem emocional que a personagem exige. A relação dela com seus vizinhos é bem interessante, especialmente com Malcom (Eka Darville). Se num primeiro momento, Jessica parece uma babaca que não está nem aí para mais ninguém, à medida que a trama avança podemos ver que ela afasta as pessoas propositalmente por medo de que elas possam ser novas vítimas nas mãos de Killgrave (David Tennant). A sua amizade com Trish Walker (Rachel Taylor) é outro ponto legal do show. Nos quadrinhos, a personagem é o alter ego da também heroína Felina. Na série, ela é uma espécie de irmã de criação da Jéssica. A química entre as duas atrizes é muito boa, e a relação entre elas é bem construída durante os episódios. Igualmente bem desenvolvido é o relacionamento dela com o Luke Cage (Mike Colter). Sempre calmo e sereno, como alguém que sabe que não pode se ferir por ter uma pele indestrutível, Colter me convenceu na pele do Herói de Aluguel, e já me deixou no aguardo por seu retorno em sua própria série.

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Mas quem brilha mesmo aqui é David Tennant. O ator britânico está fantástico. Conseguir causar repulsa e ao mesmo tempo hipnotizar com sua performance não é pra qualquer um. Killgrave é um psicopata, maníaco, desprezível, mas quando ele entre em cena é um evento. Suas cenas com Krysten são maravilhosas. A relação dos dois personagens é algo extremamente doentio. Killgrave não sente a menor empatia por nenhum outro ser humano, e é completamente obcecado por Jessica. Ele manipula, usa, e destrói tudo aquilo que estiver em seu caminho, tudo na esperança de voltar a controlá-la. O fator mais perturbador, é que toda essa dinâmica dos dois é algo muito crível. Parte do mérito da série é construir essa relação como algo muito próximo à realidade. Killgrave ilustra perfeitamente o que são relacionamentos abusivos, e o quanto suas vítimas estão indefesas. Quantos homens por aí não agem como se as mulheres existissem só pra satisfazê-los? Ou se acham no direito de controlar todos os seus passos e pessoas que entram em sua vida? Que simplesmente não a deixam seguir em frente? A cena em que ele a obriga a mandar selfies diários, em troca de não matar alguém próximo a ela, é a exemplificação perfeita disso. Killgrave não só a estuprou física e mentalmente, como faz questão de torturá-la e subjuga-la, no que para ele é uma tentativa genuína de recuperar sua afeição. Não é a toa que o personagem já figura entre um dos melhores vilões do universo Marvel adaptado para as telas (pra mim ele está pau a pau com o Rei do Crime do D’Onofrio). É quase impossível não odiar o cara.

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A showrunner Melissa Rosenberg cria toda uma trama que sabe explorar a força da mulher, usando diversas alegorias sociais, ao tocar em assuntos complexos vivenciados diariamente pela classe feminina, sem nunca soar gratuito. Reparem como apesar das inúmeras cenas de sexo, isso não é nunca usado como pretexto para sexualizar a personagem, mas como um componente natural, algo cotidiano. A forma como a série consegue ser atual e trazer questões tão relevantes é outro ponto mega positivo. Em tempos onde o combate à violência contra as mulheres ganha cada vez mais espaço nas redes sociais, em campanhas como #PrimeiroAssédio e #MeuAmigoSecreto, é ótimo ver uma série sem medo de ser direta ao tratar esse tipo de tema, sem querer romantizar ou relativizar as coisas.

Acho que talvez por isso, mesmo sendo ambientada em Hell’s Kitchen, lar do Demolidor, e fazendo diversas referências ao MCU, seja realmente difícil conseguir imaginar Jessica Jones no mesmo universo dos Vingadores, Guardiões da Galáxia ou algo do tipo. Esse tom adulto e realista, realmente a distingui das outras obras da Marvel. Eles até brincam com a ideia da personagem adotar um codinome e usar um uniforme apertado, mas a proposta aqui é realmente outra. Nenhuma outra adaptação da Casa de Ideias até agora tinha tido uma profundidade psicológica tão grande.

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Nesse sentido compara-la com outros produtos da editora, até mesmo com a série do Demolidor, que trouxe uma pegada mais sombria e pé no chão, é burrice. Jessica Jones não é exatamente uma série de super-heróis. Ela flerta ali nos primeiros episódios com o Noir, algo até esperado em uma série sobre uma investigadora particular, mas é acima de tudo uma série dramática. Na verdade, se não fosse o fato da protagonista ter superforça e perseguir um cara capaz de controlar mentes, eu poderia facilmente dizer que estava assistindo a um drama. E um bem pesado, diga-se de passagem. O vício do Malcom, a busca de Robyn (Colby Minifie) pelo irmão, e a própria relação de abusos de Trish com sua mãe, são todos dramas secundários, mas complexos. A própria Jessica Jones não é a heroína convencional a qual estamos acostumados. Ela nem quer essa função, pra inicio de conversa. Como muitos de nós, ela é alguém simplesmente tentando levar sua vida, mas que se sente compelida a lutar para que ninguém mais precise sofrer o que ela sofreu nas mãos de Killgrave. Esse, por sinal, acaba se tornando um dos grandes acertos da série: o modo como ela trabalha os traumas vivenciados pelas vítimas do vilão. Ver o impacto e a repercussão causada pelo que muitos tiveram que fazer enquanto estavam sobre seu controle mental adiciona uma nova dimensão à coisa. Todo o drama da personagem Hope (Erin Moriarty), é um bom exemplo disso. Como se já não bastasse a menina ser violentada, ir presa por ter sido ter sido obrigada a matar os pais, ela ainda se vê obrigada a abortar o filho do homem responsável por tudo isso. Eu ainda tô custando a acreditar que isso tudo veio do mesmo estúdio responsável por Homem-Formiga.

Por essas e outras, não é de se espantar que muitos estejam afirmando por aí que a série seja um divisor de águas para o universo Marvel. É sem dúvida o trabalho mais ousado da editora em termos narrativos e profundidade. Depois do Demolidor, eu realmente estava com expectativas muito altas sobre essa série, e é curioso como mesmo sendo totalmente diferente do que eu imaginava, ela tenha conseguido me impressionar tão positivamente.

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Outro ponto que acho interessante destacar é a fotografia da série, e a forma como ela ajuda a criar uma Nova York meio soturna e decadente. A linda abertura inspirada nas capas das revistas da personagem já evidencia esse clima logo de cara, e o decorrer dos episódios ajuda nessa construção. É bacana também a saída que eles encontraram para referenciar o codinome original de Killgrave, conhecido como Homem Púrpura nos quadrinhos, utilizando peças do figurino, elementos do cenário ou até mesmo a iluminação na cor roxa, toda vez que o personagem entra em cena. A participação da enfermeira Claire interpretada por Rosario Dawson é outra coisa legal e que ocorre de forma bem natural. Serve como ponte de ligação com as séries do Demolidor e a do próprio Luke Cage, que está por vir, mas tem toda uma dinâmica própria. Esses pequenos elementos mostram todo o cuidado da produção com a narrativa da trama, e a preocupação em inserir a personagem no universo Marvel (tem diversas referências aos Vingadores).

Contudo, eu tenho algumas ressalvas sobre a série. Mesmo com o arco dramático principal se mantendo sólido do inicio ao fim, o roteiro parece esticar a história para caber em treze episódios o que torna alguns momentos cansativos e meio repetitivos (como, por exemplo, todo episódio ela ter que coletar novas pistas do paradeiro do Killgrave, e armar novos planos pra captura-lo que sempre acabam dando errado). Outra coisa que me incomodou foi a personagem da Carrie-Anne Moss (a eterna Trinity de Matrix), Jeri Hogarth. A advogada que a principio parecia ser uma figura de autoridade e imponente vai perdendo força e importância gradualmente com o passar dos episódios. Sua trama até ganha um desfecho meio sangrento e inesperado, mas a impressão que me causou foi de que atriz foi subaproveitada num papel que poderia ter acrescentado muito mais. A conclusão dada a história do policial Simpson (Will Traval) também foi outra coisa que achei meio aleatória. A evolução do personagem foi interessante, e foi uma grata surpresa o ver se transformar no vilão Bazuca (nos quadrinhos ele apareceu pela primeira vez na saga a Queda de Murdock), mas seu sumiço após seu colapso ficou muito em aberto. Eles provavelmente devem explorar isso numa eventual segunda temporada – ou na série dos Defensores uma vez que ele também faz parte do panteão de vilões do Homem Sem Medo – já que a organização responsável pelas pílulas que lhe dão superforça parecem ter alguma relação com a origem dos poderes da protagonista, mas depois de todo o estrago que o personagem causou eles simplesmente o deixarem de lado assim me pareceu meio desleixo.

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A série também peca um pouco nas cenas de ação. Ok, se levarmos em consideração que diferente do Demolidor, a Jessica não teve nenhum treinamento em combate, faz sentido que suas lutas pareçam mesmo mal coreografadas, se resumindo a arremessar alguém de um lado para o outro. Por outro lado, fica parecendo que faltou criatividade aos diretores na hora de filmar sequências desse tipo, optando quase sempre por um corte fechado que mal dá pra ver a dimensão das lutas. Mas isso não compromete em nada o aproveitamento da série. Principalmente por que o foco aqui não é a pancadaria. A violência aqui é psicológica, e acredite é muito mais forte e bem melhor trabalhada ao longo dos episódios, do que muita cena de ação bonitinha sendo feita por aí.

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O final pode ter soado um pouco anticlimático para alguns, mas me parece perfeito dentro do contexto da série, com um sabor meio agridoce. É mais um acerto da Marvel, e uma ótima lição pras séries e filmes baseada em quadrinhos por vir: Investir mais na densidade psicológica de suas tramas. Pela urgência de todas as questões que aborda, pelo ótimo desempenho do elenco, e pela construção de uma heroína feminina forte que não se deixa definir apenas por seus poderes, Jessica Jones é uma série que se você ainda não assistiu, vale muito a pena dar uma conferida.

Obrigado, mais uma vez, Netflix!

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